segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Alentejo num dia cinzento


Nesse dia, vi o meu pai chorar pela primeira vez. Assim que entrei no quarto, veio-me ao nariz um cheiro intenso a detergente e a desinfectante. As paredes eram amplas, nuas e completamente brancas. O ar estava fresco, demasiado fresco para um quarto que alberga um velho de 93 anos com os pulmões doentes. A meio do quarto uma cama. Uma cama articulada, de lençóis brancos e coberta azul e verde, que destoava um pouco do restante cenário incolor.
Dentro da cama, o meu avô. Deitado de costas, tapado até ao pescoço, fixando o tecto. O rosto estava imóvel, pálido e escanzelado e os olhos, que pareciam muito mais pequenos do que eu tinha na memória, estavam baços e pareciam sonhar.
A princípio, não se apercebe da nossa chegada. Depois, reage ao barulho dos nossos passos e ás vozes que chamam o seu nome. Mas não fala. Apenas emite sons cavos e imperceptíveis. Agita-se debaixo dos cobertores, respira com dificuldade, gira os olhos nas órbitas cansadas. Penso que é a sua maneira de nos dar as boas vindas, de dizer que nos reconhece e que gosta de nos ver.
Ninguém esperava vê-lo assim. Todos sabiam que não estava bem, mas todos ficaram chocados ao vê-lo: um corpo imóvel, dentro de uma cama branca, no meio de paredes brancas e frias. Uma antevisão da morte, sem dúvida.
Nestes momentos, ninguém encontra as palavras certas. Ninguém sabe o que dizer. Mas o silêncio é demasiado duro, quando estamos á volta de uma cama numa Casa de Repouso e nessa cama está um ente querido. Nesses momentos, o silêncio é insuportável.
Alguém olha pela janela e comenta que o mais certo é começar a chover em breve. O dia está cinzento lá fora e o mundo avança, na sua marcha regular, enquanto dentro do quarto o tempo parou. Dentro do quarto o tempo é estático, branco e frio. Alguém sai para ir fumar um cigarro ou ir á casa de banho, num barulho de passos arrastados e portas que batem com estrondo.
Depois chegam mais pessoas. Três filhos, uma nora, quatro netos. O quarto cheio de visitas. Contam-se histórias de antigamente, aventuras da infância, e todos riem, porque importa desanuviar um pouco o ambiente, e, a bem da verdade, as histórias têm mesmo graça. Rir é sempre melhor que chorar e a hora da visita está rapidamente a chegar ao fim.
Tudo mudou para mim, no momento em que ouvi o meu pai soluçar. Estava de costas para nós, o rosto encostado á janela, as mãos abafando os sons da tristeza. Nada podia voltar a ser o mesmo, depois desse choro profundo, depois desse dia cinzento.

01/11/2008
À memória de Leonel Gonçalves (1916-2008)

*Foto retirada da Internet

2 comentários:

Anónimo disse...

Este teu post é muito forte... gostei muito de o ler, embora as razões que te levaram a fazê-lo não sejam as melhores.

Felizmente ainda não tive de passar pela morte de um ente querido, e não sei se teria força para escrever da forma que escreveste. Não consigo sequer imaginar a sensação de passar por uma experiência dessas, mas deve ser mesmo muito duro.

Os meus sinceros sentimentos pelo falecimento do teu avô. Espero que estejas bem, dentro do possível.

Um beijo.

Rute M. Gonçalves disse...

Sim, dentro do possível estou bem!

Obrigada pelo teu apoio.


Um bjo enorme!